Cinema e crítica.


Ensaio: Milos Forman

As danças, os salões, as festas, ambientes recorrentes em seus primeiros trabalhos, não aparecem como configuração de espaços casuais ou acessórios, mas correspondem a uma lógica, ou melhor, funcionam de acordo com seus ritmos e impulsos. O pacto e a confissão: o acidente possível, transfusão daquela barbárie que a imagem do cinema vai inscrever, ainda nesta fase nativa, é o instante último do suspense com que os olhos se encontram nos bailes, surpresos e atônitos, envolvidos em disputas e desejos indisfarçáveis, porque são simplesmente capturados pelo naturalismo do observador. Mas falar em algo “natural” aqui, para não ficarmos no vazio, pressupõe uma descida ao cerne da aventura que marca pelo menos a trinca inicial de sua obra antes da ida para os Estados Unidos: Concurso (Konkurs, 1963), Pedro, O Negro (Černý Petr, 1963) e Os Amores de Uma Loira (Lásky jedné plavovlásky, 1965).

A propósito deles, algumas observações podem servir. O adágio já antigo, assimilado pelo tempo, seria a forma e a consistência das relações de força entre os proponentes, aquela mesma energia que nos permite avançar em meio ao deserto movediço buscando algo que pode ser apenas uma miragem. Todas as vozes, todos os corpos expostos, repetidas vezes, assumem o pathos, mas não seguem o caminho das excentricidades. Para erguer tais conjuntos de imagens, Forman as autonomiza, sem que isso implique a perda da continuidade – é precisamente o contrário que acontece. Se a competição de talentos do primeiro filme (dois curtas unidos que giram em torno da música) é permeada por várias personagens vistas basicamente sob ângulos parecidos, com estreitas variações, estão ali os seus reflexos, seus rompimentos, suas curvas, suas dificuldades de articular o movimento, mas, sobretudo, aquele gosto inafiançável pela potência musical, prelúdio de uma relação não fortuita e nada desequilibrada que iria voltar praticamente em toda sua obra, incluindo a fase americana, com Amadeus (1984) sendo a sua “radicalização”.

Não estamos então muito distantes das longas danças de Pedro, O Ne- gro, dos corpos jovens e frescos e mesmo das pequenas confusões de ocasião que transcorrem com naturalidade. Neste filme, já não havia qualquer resquício de timidez. A pequena família, a mãe e o pai linha dura (“homem de discursos”, até bastante totalitário, na corporifica- ção do regime político vigente) a busca por trabalho, a visibilidade de todos os medos e os anseios que à câmera não podem mais enganar, são os temas que vão amparar as atitudes do protagonista, jovem que consegue um emprego em um pequeno mercado e tem como tarefa vigiar suspeitos, “seja aonde for”. Assim como cineasta que o filma, Pedro precisa ser o primeiro a ver, precisa antever a ação. Ele deve reconhecer a arquitetura, o plano secreto, desvendar as ideias do suspeito. A intenção do cineasta também é esta, reaproximar-se da necessidade primeira, da sublevação juvenil, da essência. Este é seu domínio e não poderia ser de outra forma.

E é assim, novamente, em Os Amores de Uma Loira. A confissão de qualquer sentimento se dá pela capacidade com que Forman dispõe sua câmera pelos cenários, ora se escondendo entre os dançantes, ora se aproximando das conversas nas mesas, esquadrinhando as fofocas e os sussurros. Sua busca, entretanto, não é sintetizada facilmente em dualismos de gênero. Seu humor é composto de uma sofisticação libertina, não a mesma de Karl Kraus, o aforista dos aforistas, mas outra, metabolizado por um ainda mais sutil veneno. Aqui, a música não só é ritmo e alegoria, mas junção atmosférica, pressão fundamental que visa retirar suas personagens do limbo a que poderiam estar condenadas, caso não houvesse uma possibilidade de salvação, um pequeno espaço de proteção, de castidade. A proximidade dos corpos, logo após os momentos que antecedem a primeira noite de amor da jovem loira do título, não permite mentiras. Ela também será levada a uma “perseguição”, pois logo resolve fazer as malas e ir atrás do rapaz com quem perdeu a virgindade. Lá, os pais dele tomam as rédeas da situação e ditam as vontades do jovem – e, ao fim e ao cabo, as dela também. Mas desta vez, ao contrário do que se passa em Pedro, O Negro, é a matriarca quem decide as coisas com certo grau de histeria. São os “mais velhos” justamente aqueles que iriam protagonizar uma série de lambanças no filme seguinte de Forman.

O Baile dos Bombeiros (Hoří, má panenko, 1967), primeiro filme colorido e último antes do diretor deixar o país rumo aos Estados Unidos, traz como protagonistas um grupo de bombeiros veteranos que, para comemorar o aniversário do seu presidente, a quem um câncer ameaça roubar a vida, resolve organizar uma festa no salão principal da cidade. Em meio aos festejos, eles também pretendem escolher a musa do baile. O problema é que nada dá certo para os bombeiros, a maioria das moças não está nem aí para a competição, os prêmios são roubados, um incêndio destrói uma casa próxima. Se Forman sempre negou que a ineficiência administrativa que o filme expõe pode ser tomada como analogia ao Estado comunista e aos velhos burocratas enrijecidos pelo maquinário do poder, o Partido, reconhecendo-se, proibiu qualquer exibição do filme. Se por um lado não podemos cair em armadilhas ao tentar encontrar analogias ao regime em qualquer situação, no entanto o humor sob o qual o filme se desenha parece bem direcionado, demasiado “real” para ter negado seu poder de sátira social e política.

É assim que o primeiro emprego, o primeiro sexo e a primeira desilusão se entrelaçam também com os últimos gestos, o último aniversário, a última festa, o último sorriso e o último pranto. Se Forman consolidou sua obra nos Estados Unidos, notadamente tendo produções muito mais largas, este seu “primeiro cinema” não é menor ou menos ambicioso. A bem dizer, é precisamente em sua necessidade de imagens, em que se pretendeu revelar uma verdade exterior aos acontecimentos filmados, que ele pôde firmar as raízes de um cinema que buscou realizá-las com o material que teve disponível, mas nunca de qualquer jeito.

Publicado originalmente no catálogo da Mostra Nouvelle Vague Tcheca: o outro lado da Europa (CCBB, 2014).

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