Cinema e crítica.


Raia 4

Um abraço apertado, sufocante e silencioso, desliza sobre a tela nas imagens que encerram Raia 4, longa-metragem de estreia de Emiliano Cunha. Em um filme povoado por silêncios de ponta a ponta e cuja estrutura de roteiro e fotografia procura localizar sua força dramática nessas imagens que parecem dizer pouco, ancorando-se em um desenrolar paciente, é interessante notar o processo evolutivo que Raia 4 vai costurando. Sem elaborar um argumento puramente retórico para evidenciar suas intenções discursivas e narrar as afeições de sua personagem central, o filme escolhe um caminho seguro para navegar, reduzindo sua trama e sua montagem ao essencial cinematográfico. Concentrado na construção de uma narratividade límpida e sem grandes rupturas ou viradas de roteiros, o filme de Emiliano Cunha prefere então explorar outros elementos e gêneros (não deixa de ser interessante como, algumas semanas após assisti-lo, seu filme me parece ainda inclassificável).

Desde o início, há um acúmulo de forças das expressões dramáticas do filme na perspectiva do olhar de Amanda (Brídia Moni), a jovem atleta de natação que é protagonista do filme. Em preparação para a disputa do Campeonato Sulamericano, o silêncio de Amanda dá a tônica de boa parte das sequências de Raia 4, pois são seus olhares e seus gestos que imprimem o ritmo e dão peso à configuração da trama. Uma velha lição bressoniana parece plenamente absorvida e satisfeita aqui. O que aprofunda a possibilidade da obra cinematográfica transmitir sensações ao público é também fruto da “força que irrompe do olho”, pois “montar um filme é ligar as pessoas umas às outras e aos objetos pelos olhares”, anotou Robert Bresson em suas célebres Notas sobre o Cinematógrafo. Essa relação faz sentido porque o filme caminha na direção de um registro intimista, vocacionado em se manter grudado em Amanda, vivendo com ela seus maiores medos, descobrindo com ela os desejos do corpo, sofrendo com ela a pressão da competitividade, em suma, percorrendo alguns caminhos incontornáveis da adolescência, bem como alguns de seus aspectos violentos e traumatizantes.

Tem maturidade, aliás, a maneira com que as coisas se desenrolam e a sensação de veracidade que transborda de suas imagens. Não de real, pois o filme tem um pé inclusive no fantástico (aquele final tem a escritura do horror), no suspense hitchcockiano e em certo cinema refratário à pressão atmosférica de um Carpenter e seus filiados; David Robert Mitchell… Não deve ser difícil para o leitor e a leitora que experimentaram, em algum esporte, as rotinas e as viagens da vida atlética alimentarem os sentidos de identificação e semelhança com Amanda. Se o mundo competitivo do esporte profissional é uma máquina de produção de desejos e ambições, também é, na mesma medida, uma ferramenta de destruição de sonhos e de terror psicológico, em muitos casos. E o terror produz terror, invariavelmente. É por isso que, para oferecer essas sensações ao público, para produzir determinados efeitos de empatia e identificação sem ser consumido por trucagens muito óbvias de roteiro, Raia 4 decide que Amanda deve guiar o olhar do espectador com o seu próprio. Sua personagem é importante para o filme como a raia de número quatro o é para a natação: ela ocupa, no espaço da ação, a centralidade do retângulo e retém a atenção de quem vê.

Amanda pouco fala por meio de palavras, revirando-se psicologicamente e expressando suas dores, não é demais enfatizar, no percurso dos seus olhares e das decisões que toma: o primeiro ciclo menstrual que chega, a competitividade do esporte, as relações com os colegas nos treinamentos, os joguetes da fase de amadurecimento adolescente e a relação com a família (com a mãe), todos estes elementos e movimentos que bagunçam a lógica e perturbam a vida de qualquer jovem, em meio a todos os clichês que a compõem.

Mas é preciso voltar aos silêncios do filme, pois eles gritam e parecem chamar o espectador, como um campo magnético, para o raio de suas vibrações. Ao invés de buscar o distanciamento observador (abordagem muito cara para as sensibilidades narrativas e estéticas contemporâneas), o filme de Emiliano Cunha parece perseguir uma proximidade radical, uma compressão do espaço, uma redução do extracampo. A sensação é de que é preciso preencher a tela com sons e sentidos muito visíveis (pois não serão colocados expressamente em palavras) e também deixar vazar as sensações que borbulham na pele angustiada da jovem Amanda. Essa força prestes a explodir lhe é inseparável e a câmera persegue seu corpo e suas descobertas, suas decepções e desejos, e participa, portanto, de tudo que for necessário mostrar para intensificar seus movimentos na trama. E por dentro, nos contam as imagens, Amanda é muitas coisas.

A precisão dessa construção é fundamental para o filme escapar de uma lógica essencialista e encontrar sua força na pureza de gestos simples que, a bem dizer, não deixam o desfecho ser uma surpresa. Se a violência e a morte nunca gastam tempo para justificarem suas crueldades, Raia 4 investe o tempo de sua duração na busca desse equilíbrio motivacional, nessa costura de juízos e decisões que podem muito naturalmente caminhar para direções as mais obscuras. E então o gesto cinematográfico se consuma em um abraço abaixo d’água que dissolve e separa dois corpos para sempre.

Dir. Emiliano Cunha (Brasil, 2019)

Publicado originalmente no Zinematógrafo.

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