Cinema e crítica.


Tamango

Entre os cineastas americanos mais ativos durante o apogeu do cinema clássico (entre as décadas de 1940 e 1950), John Berry não poderia estar. Não exatamente por abrir mão da estética clássica, por não perseguir a fluência rítmica e o equilíbrio das formas que consagraram o estilo cinematográfico de John Ford a Raoul Walsh, de Allan Dwan a Alfred Hitchcock, de Otto Preminger a Fritz Lang. Como Samuel Fuller, sobre quem o crítico francês Jacques Lourcelles escreveu se tratar de um cineasta que deu forma a uma espécie de “classicismo invertido”, Berry estava em outro lugar, tateando outras margens e, em particular, mobilizando outros discursos. Seus personagens eram os desgarrados da sociedade (He Ran All The Way, 1951), vivendo à margem da lei, tramando formas de subversão (Tension, 1949) e perturbando o ordenamento do mundo (Ça va barder, 1955). Berry olhava para outros lugares e seus filmes foram a expressão de um cinema expatriado, como muitos varrido de seu país natal no impulso anticomunista que o forçou a emigrar para a França ainda nos anos 1950. Tamango, trama anticolonialista lançada no final da década, é este filme de lugar nenhum em que encontramos a evidência de um artífice cuidadoso e atento.

Nem bom para a boa consciência colonial francesa, nem suficiente como produto cultural hollywoodiano, o filme de Berry adapta o livro de mesmo nome que conta a história de um navio de carga de corpos negros vendidos como escravos que parte da Europa rumo às ilhas cubanas. Em 1958, a França ainda ocupava quase todas as antigas colônias em África, e imagens cinematográficas que oferecessem outras representações da experiência colonial ou mostrassem fissuras que se pretendiam invisíveis eram, via de regra, sepultadas. O rompimento, a virada representacional, explodiria só em 1960 com as independências e os primeiros filmes feitos por cineastas africanos para os públicos africanos; movimento que começa cedo, antecipado, de certa forma, por René Vaultier, Paulin Soumanou Vieira e Jean Rouch, este último figura controversa nos círculos africanos da época, mas certamente decisivo na formação de outras possibilidades de representação de África e dos africanos.

Embora a trama se passe em um período anterior ao colonialismo europeu que se aprofunda com a virada do século XIX para o XX pós-Conferência de Berlim (1884-85), Tamango fala sobre raça, escravidão, racismo e lutas de libertação. Como resultado, nos infindáveis parênteses, aspas e notas de rodapé que a história do moderno colonialismo europeu legou, foi censurado tanto nos Estados Unidos quanto na França para não incentivar revoltas populares. Tamango é o nome do personagem interpretado por Alex Cressan, homem escravizado que lidera a revolta a bordo do navio com a intenção de tomar o controle da navegação e libertar a todos. Eles são maioria, mas não possuem as armas e não estão necessariamente confortáveis com a ideia subversiva de Tamango. Então é preciso um plano para tomá-las e convencer o restante do grupo (inclusive a namorada do capitão do navio, interpretada com imensa força por Dorothy Dandridge, uma mulher africana “liberta” desde que obediente) a não ceder às investidas violentas do capitão e seus tripulantes. Será preciso resistir até as últimas consequências para triunfar.

Até o final do filme, é exatamente a construção dessa revolta que iremos acompanhar. Esse é o recorte do mundo que John Berry escolheu narrar e encenar, visto do ponto de vista dos africanos escravizados, o que reafirma o frescor e a coragem intelectual da produção e a importância do filme para o seu tempo. Ainda que parte de um movimento tímido no cinema ficcional francês e hollywoodiano do meio do século, onde as perspectivas africanas eram, na melhor das hipóteses, limitadas, Tamango é precisamente um filme subversivo no sentido seminal da palavra: contra as regras vigentes, aceitas pela moral dominante da época como naturais. É preciso então destruí-las e este é o gesto singelo do filme de Berry. Se a moral da época ainda permitia a venda de africanos como mercadorias sob o signo da propriedade privada, aos homens e mulheres sem liberdade nada nunca foi natural. É este o olhar que Tamango privilegia (e que o seu protagonista irá defender na forma de uma reação violenta), um olhar de outra parte, construído em franca oposição ao imaginário colonial muito vivo no cinema francês desde sempre.

Nesse sentido, o final do filme de Berry é crucial (e daqui para o fim ele será contado), pois nele há um plano em que, confinado no porão do navio após uma tentativa fracassada de tomar o controle da embarcação, o olhar de Tamango cruza em panorâmica todos os outros corpos impávidos que esperam uma decisão do que fazer a seguir. Das duas, uma: ou se entregam e permanecem em viagem rumo ao destino final, em Cuba, ou explodem o navio. Nessa cena, no caminho da visão de Tamango, por dois ou três segundos mágicos, seu olhar encontra também o do espectador, e em seguida exclama: “Mesmo que a gente morra, venceremos. Por que eles podem vender homens vivos, mas não mortos” (Even if we die, we’ll win. Because they can sell living men, but not dead ones”).
Tamango mira um espaço de representações que apenas muito tardiamente seria visto em filmes ficcionais europeus e norte-americanos. A alegoria do canto que Tamango convoca seus companheiros a gritar a plenos pulmões, anunciando o ato sacrificial, coloca em crise o imaginário colonial e a conquista épica do colonizador. Assim como Ousmane Sembène faria em seu longa-metragem de estreia, A Negra de… (1956), Tamango quer resistir com a própria vida como forma de negação da ordem vigente, de insurgência, de liberdade. Não estamos diante de contradições. E essa é, de fato, sua atitude política e seu gesto estético em contragolpe à opressão colonial.

Dir. John Berry (França/EUA, 1958)

Publicado originalmente no Zinematógrafo.

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