Cinema e crítica.


Armageddon Time

Diversos elementos contribuem para que os contornos dramáticos de Armageddon Time consigam dar forma ao mais recente filme de James Gray. Sua estrutura de montagem espaçada e vagarosa, por vezes simplesmente demorando-se em pormenores certamente triviais para a média de seus pares, é um exemplo disso. À mesa de um jantar em família, é um detalhe qualquer que pode revelar conflitos íntimos dos personagens (e suas contradições); um comentário despretensioso, uma fala vibrante, o silêncio, o medo, a hesitação, a revolta. Gray é um artista de detalhes, cuja veia melodramática precisa correr e ser percebida em sua complexidade, se espalhar em cada diálogo, em cada sequência. O objetivo parece evidente: o intervalo entre uma conversa, onde toda cena ou ação interessa muito ao filme, que se constroi de forma paciente.

Embora Amantes (2009) seja uma leitura mais direta do Dostoievski de Noites Brancas, talvez Armageddon Time seja seu filme mais tributário ao escritor russo do ponto de vista moral – e político. Mas as semelhanças entre eles não param por aí: a trilha sonora dedilhada dita o ritmo no filme de 2009 e também conduz todos os principais momentos neste – não seria absurdo pensar, num exercício ficcional, no personagem de Joaquin Phoenix em Amantes como uma consequência do jovem protagonista de Armadeddon Time, repleto de atitudes e pensamentos conflituosos, vivendo em permanente aventura e algum despreparo para encarar o mundo com maturidade.

Esse tom límpido para encarar um tema, o racismo (que é apenas um dos assuntos do filme, o mais aparente, mas não o único), é notadamente violento demais para determinados discursos que circulam entre nós nos dias de hoje, empacados ora por uma mentalidade escolar, ora por uma fissura de pensamento colonial – quando não operam com base em simplificações. Gray escolhe outro caminho, mais sujo e, não há outra palavra, mais difícil. Ele vai mostrar, mas não vai dizer; ele quer a nuance, não o atalho. Ao mesmo tempo, mesmo em uma obra com muitos traços biográficos, o filme não é sobre o “eu”: o narrador quer que pensemos em terceira pessoa. Mas essa não é a única concessão empregada aqui para tornar seus interesses mais evidentes, ele nos dá mais alguma coisa.

Num dia qualquer, enquanto concorre com a música erudita no rádio, Só Danço Samba toca em versão já amalgamada pelos jazzistas americanos, com Stan Getz e Luiz Bonfá. Estamos na virada infernal dada com a campanha que levaria Reagan à Casa Branca, no início dos anos 1980. E lá está ele na televisão, citando o armageddon, o fim do mundo pela destruição dos valores incontestes que a lei deve defender e fazer vigentes, recorrendo à Sodoma e Gomorra como símbolo de baixeza. A ameaça comunista provoca a tradição conservadora: é preciso defendê-la. É esse pano de fundo que marca a história e dialoga com as características, paixões, angústias, atitudes e reações dos personagens ao longo do filme. Pano de fundo esse que tem em Ellis Island um ponto de partida recorrente na filmografia de Gray. É por lá que chegaram milhares de imigrantes de toda parte para povoar a Nova Iorque do início do século XX, como os avós do jovem Paul Graff. Com eles desembarca também um conhecimento ancestral, judaico, e uma forma de ver o mundo nem sempre compreendida pelo menino. Armageddon Time é um filme sobre a formação desses valores na sua imaginação e na sua realidade.

Na escola, o jovem estudante se aproxima de Johnny Davis, um menino negro, talvez o único da classe. Acontece que o seu “meio” não lhe ensinou a conviver com aquele rapaz de pele escura. As lições aprendidas em casa, com seus pais e seus avós, eram contraditórias e no próprio ambiente escolar o que ele via sem entender era percebido com desconfiança. Quando presencia episódios francamente racistas, não sabe como reagir. Em conversa num parque, em um dos momentos mais belos do filme, ele manifesta esse incômodo ao avô (um Anthony Hopkins em atuação de tom baixo, contida, interna, como de resto todo o elenco e o próprio filme). Aqui não há dúvidas de que ele sabe o que significa sua impotência e a violência de tudo o que vê contra Johnny. Mesmo assim, amadurecendo certa consciência diante do mundo à sua volta, irá continuar impotente. Embora sua leitura de todo esse contexto tenha incomodado muitos espectadores, a encenação de Gray, em todos os momentos de maior tensão no filme, é clara e precisa sobre aquilo que ele critica e questiona. Que me perdoem os conteudistas, mas é a forma, dada pela representação, que garante ao tema a complexidade que ele merece.

No discurso, Armageddon Time não oferece violência punitiva ao espectador sedento além das mais variadas que suas cenas mostram, talvez por isso algum desconforto moralista tenha percorrido algumas leituras sobre o filme. Ele mostra uma realidade material não só por aquilo que evidencia, mas por tudo que conscientemente apaga, isola, deixa de lado. Ele escolhe o caminho mais arriscado, não o da denúncia corriqueira que pode hoje em dia ser feita por qualquer um, mas um percurso torto, confuso, de difícil concisão. É por isso, justamente, que o filme de Gray é insuficiente ao lidar com a questão do racismo na formação de valores de um menino da classe média liberal americana, pois ele não fornece um encerramento conclusivo, absoluto, explicativo. Ainda bem.

Não se poderia esperar algo diferente de um cineasta que vem construindo há quase 30 anos um cinema de sugestões, de dúvidas, de conflitos e contradições, de pesadelos mentais que abalam a formação moral, intelectual e política de seus personagens. Seu “mundo” está sempre em aberto.

Dir. James Gray (EUA, 2022)

Publicado originalmente na Revista Abismu.

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